Sete e catorze da manhã. Arnaldo achava engraçado como o relógio mostrava sempre a mesma hora ao espichar a vista subitamente para a parede da cozinha, logo antes de engolir um copo d’água gelado e sair às pressas para o trabalho. Sempre sete e catorze!
Seu dia começava assim: acordava, às vezes se demorava mais na cama, às vezes não, às vezes tinha café pronto, às vezes ele mesmo tinha de fazer, tomava banho pensando no que deveria fazer ao longo do dia, vestia-se, penteava os ralos cabelos que lhe sobravam, despedia-se da mulher, e, o relógio, debochadamente, sempre marcando as tais sete horas e catorze minutos antes de Arnaldo engolir a bendita água. Era como se tivesse feito um pacto com o diabo para sair de casa todo dia à mesma hora e não se lembrasse mais.
Quando botava o pé direito na calçada do seu prédio na Nossa Senhora de Copacabana o pensamento já estava longe. Para ser mais preciso, estava na pilha de papéis em seu escritório de advocacia localizado na movimentada Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Tanto é que nos 28 anos em que morava no mesmo local, nunca havia reparado no sujeitinho que ficava ali perto, uma rua abaixo, na Avenida Atlântica, distribuindo quadros a quem lhe dava a atenção. Foi aí que Arnaldo o viu, reparou e então ouviu:
- Senhor, tome a sua arte e tenha um ótimo dia! – cumprimentou o homem, estendendo o braço esquálido que segurava um quadro com uma moldura de madeira barata.
Arnaldo rejeitou a oferta sem dar muita atenção dizendo apenas:
- Não, não, meu amigo. Tô sem dinheiro! – ainda preocupando-se em justificar a recusa pelo menos. A entonação do “amigo” sugerindo exatamente o contrário. Seu humor era ácido pela manhã.
- Mas quem foi que disse que eu estou cobrando? É de graça! É pra você, meu querido! – falou o artista de rua, sorrindo de orelha à orelha – Pode pegar! – reforçou.
Sinuca de bico. Arnaldo sempre tivera esse roteiro pronto na sua cabeça. O cara humilde chegava, tentava empurrar o produto de qualidade questionável por um preço de deixar maluco qualquer varejista honesto no mercado e ele recusava. Os papéis eram bem claros. Mas aí vem esse sujeito e diz que é de graça? Não pôde se conter. Girou o tronco e desembestou a falar:
- ‘De graça’ você disse? Então posso pegar esse quadro e ir embora sem que você ganhe nada por isso? É isso mesmo, amigo? – indagou com um ar irônico, como se sua pergunta pudesse colocar juízo naquela pobre cabeça desprovida de intelectualidade. Pela primeira vez pousou seus olhos no quadro. E viu que era bom!
- Sua felicidade é o meu pagamento! – respondeu com uma sinceridade digna de um político. Não um político qualquer, mas daqueles que tentavam as eleições presidenciais.
- Ó – avisou Arnaldo – Vou levar então, hein? – agora já estava rindo de toda a situação. De repente percebeu como aquela figura magricela, no fim das contas, era carismática. Sua serenidade passava tamanha tranqüilidade que Arnaldo já havia se esquecido do horário do trabalho.
- Me deixaria muito feliz se o levar! E, se quiser voltar amanhã, terei uma obra nova para você – prometeu.
Ao que Arnaldo não pode mais sustentar a alegria fingida e explodiu em indignação:
- Pelo amor de Deus, homem! O que está acontecendo?! Você acha que vai ganhar algum dinheiro desse jeito?! Como vai melhorar de vida? Você não pode sair distribuindo estes quadros por aí assim, ora bolas! – Arnaldo já estava com os fiapos de cabelo desarrumados e com veias saltadas nas têmporas suadas sob o sol matinal da orla carioca.
E o homem sem nome simplesmente retrucou:
- Agradeço sua preocupação, nobre homem. Mas se o que te faz feliz é ganhar dinheiro, corra atrás do dinheiro. Entretanto, não force outras pessoas a seguir o mesmo caminho que você. O que me faz feliz é fazer outras pessoas felizes e, até o momento, creio que estou no caminho certo. O resto é o resto – o pobre maltrapilho pareceu até ganhar uma aura reluzente após proferir ensinamentos tão cheios de significado.
Diante dessa resposta, Arnaldo fechou a matraca, colocou o quadro debaixo do braço e, ainda confuso e atrasado, retomou o caminho do trabalho. Ficou pensando no que o sábio homenzinho disse em vários momentos daquele dia. Será que tinha razão? Arnaldo até pensou se era aquela pilha de processos que o faziam de fato feliz.
- Rá! Que baboseira sem sentido! – pegou-se caçoando do vagabundo da rua que achava ter encontrado a fórmula da felicidade.
No dia seguinte, o artista de rua aguardou aquele senhor questionador aparecer novamente para pegar mais um quadro, ou melhor, mais uma pitada de felicidade. Mas Arnaldo não apareceu. Havia descoberto o que lhe fazia feliz. Retomou seus ensaios ao piano. Nunca mais se enterrou na pilha de processos do seu escritório apertado no Centro do Rio. E descobriu que o relógio da parede da cozinha mostrava outros horários além das sete e catorze. Meses depois, sua primeira composição nasceu de uma inspiração vinda de um certo quadro com uma moldura barata pendurado na parede da sala. A obra do homem que distribuía arte estava completa.
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