quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coação na horta



por Eduardo Cozer

Ah! A empolgação do vento batendo em ondas invisíveis! Os pulmões sendo exigidos ao máximo da capacidade. O cheiro do verde das plantas e flores, o aroma de terra fresca espremida sob as patas peludas. O sangue quente fazendo o corpo formigar. No entanto, a diversão desfrutada pelo jorro de adrenalina na corrente sanguínea não é maior do que o instinto de sobrevivência oriundo do jogo de perseguição. E lá se vai, por mais uma manhã, a lebre marrom atravessando o gramado para chegar à horta, rica em cenouras, nabos, rabanetes e batatas.
Entretanto, há também outra entusiasta das corridas matinais: a raposa-vermelha. Olfato aguçado, para não embaralhar o odor peculiar da lebre assustada com a infinidade de fragrâncias que podia captar, visão projetada no ponto mais distante em busca da presa e audição sensível a qualquer triscar de patas nas folhas sobre o solo. A raposa vinha dando incertas contra a lebre há sete dias agora e já estava ficando incomodada com isso. Hoje pegaria aquela danada.
E pegou. Quando a interceptou já foi logo falando:
- Alto lá, lebre matreira! Quem você pensa que é para sair pegando estas belas hortaliças sem me consultar? – resmungou a raposa felpuda, cheia de pose.
- Ora essa! Era só o que me faltava. Uma raposa melindrada! – fungou a lebre, passando a pata traseira sobre as longas orelhas – Por que deveria consultá-la? – provocou.
- Pelo simples motivo de que esta horta faz parte do meu território e por aqui, minha amiga, nós temos regras – gabou-se a raposa, fazendo uma mesura exagerada para enfatizar o que dizia.
- Nós? Regras? Estou confusa... – admitiu a pobre lebre faminta.
- Logo, logo você aprende... – tranquilizou a criatura de dentes afiados – Se você prestar mais atenção ao seu redor verá que tudo aqui tem um motivo. Cada animal desta região caça, colhe ou produz alguma coisa. Eu garanto que ninguém passe o inverno desabastecido em troca de algo de valor. Assim, eu e você precisamos chegar a um acordo... – sugeriu cheia de malícia – O que você tem para me oferecer?
- Olha, raposa, digo, Dona Raposa, sou uma lebre de vida simples. Não tenho nada a oferecer que possa lhe interessar – atestou ingenuamente a lebre.
Mas a raposa tinha um ponto em mente. E já estava em vias de chegar ao que queria:
- Você faz muito pouco de si mesma, cara lebre. Pois eu bem sei que você teve uma farta ninhada há pouco e um dos pequeninos anda desenganado, vai de mal a pior. Deixe ele a meus cuidados e estamos acertadas – piscou a raposa, dando seu golpe final.
Ao que a lebre, entrando no jogo do vil canídeo, respondeu:
- Isso eu não posso fazer. Mas, se me permite sugerir, conheço uma família de esquilos bastante irritante. Eles vivem próximos à minha toca e têm um filhote que se encaixa no perfil que você procura. Ele lhe sairá melhor do que a encomenda! – solucionou o caso.
- Hum! Você pegou rápido o negócio. Então estamos acertadas e ...
Mas a raposa nem conseguiu terminar de falar. Fora surpreendida por uma matilha de beagles que cercava o perímetro a mando da lebre astuta e precavida. Os cães destroçaram a raposa e a lebre foi colher suas hortaliças sem dar mais nenhuma atenção à sua interlocutora. Porque morria de fome. E porque acidentes apenas acontecem com aqueles que deixam que lhes aconteça.
Esta já era a quinta horta que a lebre dominava para sua família, que não parava de se multiplicar. Pensou consigo mesma se algum dia seria tratada com mais respeito pelos mamíferos maiores. Por ora, apreciou seu rabanete, relembrando com crueldade do fato ocorrido minutos atrás.

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