Enquanto isso, em um ordinário ônibus de uma megalópole numa pseudo-potência latino-americana:
- Boa tarde – cumprimentou o sujeito, estendendo sua última cédula na carteira para o cobrador.
- É dois e vinte. “Falta” vinte centavos – retrucou a figura desdentada com a entonação de quem se sente pouco orgulhoso em exercer sua profissão.
Contraiu a face. Enfiou a mão direita fundo no bolso da calça jeans puída.
- Amigo, é tudo que eu tenho. Não quebra meu galho, não? – perguntou humildemente, na tentativa de gerar compaixão no coração do seu mais novo camarada.
- Vai lá – disse o cobrador, naquele instante sentindo-se um mestre do universo, apegando-se ao mísero poder que sua função lhe conferia – Mas só dessa vez, hein? – deleitando-se com esta última frase.
Passou pela catraca carregando consigo o peso da humilhação de ter precisado recorrer ao expediente do "jeitinho". Mal podia se deslocar naquela sucata sobre rodas. Pelo sacolejar dos passageiros, parecia que todas as porcas do veículo estavam afrouxadas e que a mera passagem por mais uma cratera no asfalto traria abaixo aquele monte de ferrugem que curiosamente insistia em permanecer de pé.
- Tá ocupado? – perguntou pela terceira vez e novamente recebeu uma resposta afirmativa com um breve aceno de cabeça. Ficou pendurado num corrimão a viagem inteira, durante duas horas e meia.
De repente sentiu um esbarrão às costas que quase o levou ao chão. Conseguiu se segurar, assustado, e olhou para trás. Viu um indivíduo corpulento que o olhava apreensivo. Não tinha culpa do ocorrido.
- Nada! – respondeu ao pedido de desculpas do homem gigantesco.
Percebeu então que havia passado do seu ponto de destino. Puxou veementemente a cordinha, que não funcionou. Berrou ao motorista algo de difícil compreensão, só para chamar a atenção. Uma brecada brusca e saltou para a liberdade com o ônibus ainda em movimento. Ao tatear seu bolso esquerdo, entendeu a trombada que havia sofrido minutos antes. Não tinha mais celular.
Chegando à casa, notou que sua vidraça havia sido quebrada. Medo de ter sido mais uma vítima da violência que corroía a comunidade onde vivia, ou melhor, tentava sobreviver. Temeu pelos seus filhos. Acelerou o passo. Enfiou a mão na maçaneta com o coração aos pulos.
Foi então que pode visualizar a cena. Seus pequeninos estavam espalhados no chão do casebre humilde. Rolaram lágrimas pelas suas faces. Lágrimas da mais pura felicidade. Todos os três deitados de bruços, empenhados em suas tarefas do colégio. Um ajudando ao outro, todos divertindo-se, como bons irmãos. Eram a razão da sua vida, o motivo do seu sorriso e a esperança de um futuro melhor. Juntou-se a eles e, naquela noite, os risos naquela casa podiam ser ouvidos a quilômetros de distância. Dias melhores estavam por vir.