domingo, 31 de outubro de 2010

Motivos para sorrir



por Eduardo Cozer

Enquanto isso, em um ordinário ônibus de uma megalópole numa pseudo-potência latino-americana:
- Boa tarde – cumprimentou o sujeito, estendendo sua última cédula na carteira para o cobrador.
- É dois e vinte. “Falta” vinte centavos – retrucou a figura desdentada com a entonação de quem se sente pouco orgulhoso em exercer sua profissão.
Contraiu a face. Enfiou a mão direita fundo no bolso da calça jeans puída.
- Amigo, é tudo que eu tenho. Não quebra meu galho, não? – perguntou humildemente, na tentativa de gerar compaixão no coração do seu mais novo camarada.
- Vai lá – disse o cobrador, naquele instante sentindo-se um mestre do universo, apegando-se ao mísero poder que sua função lhe conferia – Mas só dessa vez, hein? – deleitando-se com esta última frase.
Passou pela catraca carregando consigo o peso da humilhação de ter precisado recorrer ao expediente do "jeitinho". Mal podia se deslocar naquela sucata sobre rodas. Pelo sacolejar dos passageiros, parecia que todas as porcas do veículo estavam afrouxadas e que a mera passagem por mais uma cratera no asfalto traria abaixo aquele monte de ferrugem que curiosamente insistia em permanecer de pé.
- Tá ocupado? – perguntou pela terceira vez e novamente recebeu uma resposta afirmativa com um breve aceno de cabeça. Ficou pendurado num corrimão a viagem inteira, durante duas horas e meia.
De repente sentiu um esbarrão às costas que quase o levou ao chão. Conseguiu se segurar, assustado, e olhou para trás. Viu um indivíduo corpulento que o olhava apreensivo. Não tinha culpa do ocorrido.
- Nada! – respondeu ao pedido de desculpas do homem gigantesco.
Percebeu então que havia passado do seu ponto de destino. Puxou veementemente a cordinha, que não funcionou. Berrou ao motorista algo de difícil compreensão, só para chamar a atenção. Uma brecada brusca e saltou para a liberdade com o ônibus ainda em movimento. Ao tatear seu bolso esquerdo, entendeu a trombada que havia sofrido minutos antes. Não tinha mais celular.
Chegando à casa, notou que sua vidraça havia sido quebrada. Medo de ter sido mais uma vítima da violência que corroía a comunidade onde vivia, ou melhor, tentava sobreviver. Temeu pelos seus filhos. Acelerou o passo. Enfiou a mão na maçaneta com o coração aos pulos.
Foi então que pode visualizar a cena. Seus pequeninos estavam espalhados no chão do casebre humilde. Rolaram lágrimas pelas suas faces. Lágrimas da mais pura felicidade. Todos os três deitados de bruços, empenhados em suas tarefas do colégio. Um ajudando ao outro, todos divertindo-se, como bons irmãos. Eram a razão da sua vida, o motivo do seu sorriso e a esperança de um futuro melhor. Juntou-se a eles e, naquela noite, os risos naquela casa podiam ser ouvidos a quilômetros de distância. Dias melhores estavam por vir.

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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Bola na cal, heróis na berlinda



por Eduardo Cozer

Pênalti. Agora era Tilico, a bola, o goleiro e o gol. A gorducha de couro, companheira de longa data, sua única aliada para alcançar o tão sonhado título. Sonho alimentado principalmente pela torcida do Bananense Futebol Clube por mais tempo do que o mais velho dos torcedores podia se lembrar. Para os 77 mil presentes, vivenciar o triunfo do seu pavilhão sobre todos os outros seria algo maravilhosamente inédito. Para todos os lados que se olhava podia-se ver homens, mulheres e crianças no estado mais pleno de sua conexão com o poder transcendental no qual criam.

Os olhos castanhos fixos no rosto do arqueiro adversário simbolizavam o peso que Tilico sentia e tentava não transparecer. A verdade é que o ambiente no Estádio das Bananeiras envolvia, emocionava e encantava, capaz de fazer com que marmanjos de cinqüenta anos na cara ficassem com olhos marejados. Com Tilico não poderia ser diferente. Cada gota grossa de suor que escorregava de sua testa explodia no gramado na forma de centenas de gotículas, irrigando o gramado do majestoso Bananeiras com sal, adrenalina e esperanças.

Na longa caminhada até o ponto de onde a penalidade máxima seria executada, o flash de sair correndo e escapar daquela pressão passou milhares de vezes por sua cabeça. Mas havia miríades de olhos sobre ele. No popular, não podia dar para trás agora. E procurava apagar pensamentos negativistas da cabeça. Mas quanto mais tentava afastá-los, mais os atraía. Por que isso sempre acontece com ele?

As pernas arqueadas, cobertas pelos meiões parcialmente arriados e sujos de lama, pesavam uma tonelada cada. Cada passo representava um esforço idêntico ao de disputar 90 minutos de uma final de Copa do Mundo. Do início da sua caminhada até chegar à meta, segurando a bola longe do corpo, como uma bomba-relógio prestes a explodir, mudara totalmente sua percepção a respeito de Roberto Baggio, vilão italiano no tetra mundial brasileiro em 1994. Afinal de contas, o pobre coitado era só um mero mortal. E bater um pênalti era responsabilidade demais até mesmo para o presidente do clube. É cruel demais com o executor da cobrança.

A torcida reverbera e Tilico escuta seu nome sendo gritado pela massa ensandecida. Chamavam-no de Tilico Lelé por conta das suas comemorações inusitadas e cheias de inspiração. Talvez seu apelido nunca tivesse feito tanto sentido quanto hoje. Pois, neste momento, Tilico estava psicologicamente em frangalhos.

Se recompôs. Encheu a mente de pensamentos bons. Olhou novamente para o goleiro adversário, agora com uma confiança altiva capaz de abalar a alma dos mais otimistas. Repetiu os movimentos sem pensar muito. Havia treinado penalidades sua vida inteira e poucas vezes havia desperdiçado cobranças em jogos oficiais. Deus não havia de ser tão injusto assim com ele. Porque ele era Tilico Lelé, ídolo da torcida. Ouviu o som seco da batida do seu pé esquerdo na bola. O turbilhão de sons se tornando uma zueira nos seus tímpanos. E o mundo ruiu sobre Tilico. Porque futebol não era uma invenção de Deus. E Ele pouco sabia sobre a façanha de tornar-se de herói a vilão em milésimos de segundo por culpa de uma penalidade máxima. Desabou incrédulo. Errara o chute da sua vida.

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domingo, 24 de outubro de 2010

Bravo, Catarina



por Eduardo Cozer

Catarina sentou-se com suavidade em sua banqueta de madeira com a coluna elegantemente ereta e admirou-se ao espelho. Foi a criatura mais bela que já se sentou naquele assento. Estava linda, deslumbrante. Naquele momento ela era uma figura transcendental e era preciso fazer muita força para lembrar a si própria de que não passava de uma mera mortal reluzindo à luz de um holofote, pois todos os seus sentidos a seduziam em acreditar no contrário. Um desavisado que passasse por ela poderia jurar de pés juntos que teria visto uma aura ao redor daquela poderosa mulher. Pois a poucos minutos de estrear, Catarina parecia uma deusa recém-saída de uma pintura de um grande mestre do Realismo. Uma Vênus de Botticelli, talvez.

Entretanto, era de carne e osso. E, àquela altura dos acontecimentos da noite de estréia, era como se o centro do mundo estivesse no seu estômago e controlar o nervosismo era algo simplesmente impossível. Sempre tentava se preparar para os grandes dias, se convencer de que no fim das contas era só mais uma noite, mas, quanto mais passavam os anos, mais nervosa parecia ficar. Respirava fundo, porém, ao expirar podia sentir que seu corpo era pura tremedeira enquanto expulsava o ar do busto inflado aos solavancos.

Gostava de pensar que isso significava que estava viva e ainda se importava com aquilo que amava fazer. E desta forma, tentando controlar o nervosismo, não conseguindo e se convencendo de que isso era bom, Catarina deixava o tempo passar até ser chamada para o palco do Teatro Mariinski. Nunca conseguia afastar da cabeça o pensamento de que seu tempo para o balé estava se esgotando mais rápido do que ela podia aceitar.

Aí, passada a coxia e a poucos centímetros de entrar em cena, vestia-se de confiança e tornava-se a bailarina protagonista do mundialmente famoso grupo de balé russo. Sentia que durante aquelas horas em que se desenrolava o espetáculo era como se o público vivesse todas as emoções através dela. Risos, lágrimas, excitação e angústia.

No caso, Catarina vivia uma princesa que, após espetar seu dedo em uma rosa no seu décimo sexto aniversário, entrava num estado de sono profundo. E seria libertada desta terrível maldição, arquitetada por uma fada maligna, apenas com o beijo do seu amor verdadeiro. Catarina, agora como Princesa Aurora, sem sequer abrir sua boca tinha a capacidade de tomar o público em suas mãos e fazê-lo viajar enquanto acompanhava seu gestual leve, belo, capaz de hipnotizar. As composições de Tchaikovsky eram o golpe de misericórdia nos espectadores, já rendidos pela graça e movimentos simétricos performados por Catarina.

Aplausos entusiasmados. Bravo! Bravo! Rosas aos pés. Podia até mesmo ouvir algumas pessoas saudando-a pessoalmente. Bravo, Catarina, bravo! As cortinas baixam. Catarina, com a cabeça humildemente reclinada para baixo, chora copiosamente e não sabe se será capaz de fazer tudo aquilo novamente. Amava demais o balé.

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nas trincheiras de uma fictícia guerra brasileira


por Eduardo Cozer

O coronel Brito já estava ficando velho demais para aquela coisa toda de guerra. O dia inteiro era consultado pelos tenentes-coronéis, majores e às vezes capitães. Por deuses! Não se lembrava de ser tão inseguro quanto os jovens líderes que o Exército formava agora. Na sua época tudo era mais simples. Falava-se menos, fazia-se mais e, por incrível que pareça, as coisas funcionavam melhor do que hoje em dia. De maneira que, enquanto alguns tenentes cabeças-ocas de olhos assustados e calças borradas o interrogavam, pegava-se já pensando em quando penduraria seus coturnos e poderia cuidar da sua fazenda no meio cerrado brasileiro na “santa paz de Deus”, como gostava de falar.
- O quê é que você falou agora, meu filho? Repita com calma, por favor – perguntou o coronel.
- Senhor, o major Vieira discorda em avançarmos. Ele entende que estaremos deixando um território privilegiado desnecessariamente e devemos esperar o inimigo tomar a iniciativa – disse o capitão Souza.
- E posso saber por que ele mesmo não vem até aqui falar isso para mim? – retrucou o coronel Brito, as mãos apertando os braços de sua cadeira. Sentia-se ferido no seu orgulho e sua vontade era de sugar o sangue do trêmulo capitão que se postava à sua frente.
- Por que ele entendeu que era uma situação emergencial em que não podia perder tempo com negociações que não levassem a uma decisão imediata – o capitão Souza já suava como um porco dentro da tenda abafada, em parte pelo calor, em parte pelo enorme nervosismo – Ele foi diretamente ao general Fonseca, senhor.
- Há! Azar o dele! O Fonseca vai colocá-lo em seu devido lugar na nossa hierarquia... – divertiu-se com a idéia do sermão que o general daria no major.
- Mas, senhor, este é o ponto. Minha vinda até aqui é apenas para comunicá-lo que a sugestão do major Vieira foi acatada. A infantaria não vai avançar e o bombardeio foi cancelado – atentou o capitão, com a farda já encharcada.
- Cancelado? Como assim cancelado? Quem eles pensam que são para decidir isso sem me consultar? – agora o coronel Brito, furioso, empertigara-se na cadeira e estava quase saltando por cima da mesa na jugular do capitão.
- Senhor, é que, hum... – gaguejou o capitão Souza.
- Desembuche logo, homem! O que é que aconteceu? Quero saber de tudo antes de falar algumas verdades diretamente ao general! – rugiu o coronel.
- Senhor, é que tivemos um problema. O aspirante indicado pelo senhor cometeu um erro no pedido de munições. Neste momento estamos praticamente sem munição para fazer uma ofensiva. E o carregamento só deverá chegar em três dias. Não sabemos como isso foi acontecer, mas aconteceu – concluiu o capitão Souza, a cara vermelha como um tomate, os olhos fixos num ponto imaginário atrás da cabeça do coronel.
- Você está me dizendo que neste exato momento nossos homens estão nas trincheiras apontando armas descarregadas para o inimigo, capitão Souza? É isso que você está me dizendo? – perguntou o coronel Brito, perplexo.
- Nem todos, senhor – disse o capitão, visivelmente desconfortável – Alguns ainda possuem balas na agulha – complementou, como se a observação fosse amenizar de alguma forma o problema.
- Minha Nossa Senhora, era só o que me faltava... Você dá ouvidos uma vez na vida à sua esposa e é isso que acontece... – deixou escapar o agora murcho e impotente coronel Brito – Procure o meu cunhado, digo, o aspirante Silva e diga para vir até aqui imediatamente! – determinou, pronunciando a patente do irmão da esposa como se fosse um pedaço de limão azedo no canto da boca.
- Agora mesmo, senhor! – respondeu prontamente o aliviado capitão Souza.
Ao passo que, antes de liberá-lo para seus afazeres, o coronel quis saciar sua última curiosidade com o tão bem informado capitão.
- Capitão Souza, você disse três dias? Três dias inteiros? Por que toda essa demora se estamos tão próximos do posto de fornecimento de munições? – questionou mansamente o coronel Brito.
E o capitão novamente contraiu-se, tenso, e pensando na melhor resposta para dar ao seu coronel. Pensou consigo mesmo que qualquer um que estivesse naquela tenda poderia ouvir seu coração martelando o peito de dentro para fora.
- É... Hum... Bom... É que... É carnaval, senhor... – engoliu a seco.
E o coronel, novamente imóvel, parecia não mais prestar atenção ao mundo exterior. Entrara em um transe profundo, o olhar perdido e desolado. Anos de exército para escutar toda aquela patacoada! E assim, petrificado como uma estátua de um derrotado militar, ficou a tarde inteira. O capitão Souza retirou-se vagarosamente sem saber muito bem o que devia fazer, deixando o coronel Brito sonhando com sua fazenda, seus cavalos, sua esposa e a lápide de seu cunhado ao lado do chiqueiro, seu lugar de direito e merecimento aos serviços prestados ao exército brasileiro.


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domingo, 17 de outubro de 2010

Pesadelo de Luciano


por Eduardo Cozer

Luciano sempre achou curioso como engatamos um sonho no outro e como esta transição é confusa. Mais ou menos como na noite passada em que, após um sonho maravilhoso, lembrava-se apenas de um borrão de imagens e de repentinamente se encontrar em outro sonho que nada tinha a ver com o anterior.

Sonhou que se encontrava em um lugar onde tinha que dar de bandeja praticamente metade de toda sua riqueza para os governantes e, quanto a isto, não tinha negociação. Neste lugar, milhares de pessoas perdiam suas vidas diariamente e isso não parecia incomodar a ninguém. Na verdade, o certo era viver se deslocando de uma jaula para a outra, pois andar livre e despreocupadamente era simplesmente perigoso demais e, não fazer isso era o mesmo que assumir os riscos de perder a própria vida sem mais nem menos. Pelas janelas de casa e dos seus meios de transporte podia testemunhar a sujeira, a miséria e a falta de educação no trato entre os cidadãos. Podia jurar que tinha visto um senhor idoso prostrado em um beco aos prantos, desesperado, pedindo ajuda sem ser atendido pelos passantes.

A sensação em relação às pessoas que observava era de que elas não se sentiam donas do lugar em que viviam, pois seus dejetos ficavam expostos a céu aberto e próximos às suas próprias residências. A água dos rios aonde elas se banhavam era a mesma que continha uma carcaça pútrida de um animal irreconhecível boiando. Até onde a vista podia alcançar só se podia ver terra batida, infértil e sem cuidados. Havia um ar blasé em toda aquela gente. Parecia que alguém havia passado por ali e lhes arrancado todos os sonhos, ambições e perspectivas de um futuro melhor. Aquelas pessoas pareciam estar tão compenetradas em suas simplórias tarefas que não perceberiam se o Messias para quem tanto rezam aterrissasse em meio a elas e começasse a operar milagres.

Talvez, também, pelo fato de que, naquele lugar, as pessoas viram passar alguns sujeitos que chegavam como agentes da esperança, mas apenas faziam suas contribuições ao longo rastro de frustração já existente. Eles sempre vinham cheios de boas intenções, um grande repertório de palavras bonitas e um punhado de promessas. E sempre muito distintos na forma de se trajar. Usavam ternos, vestidos, fardas e batinas. Porém, fosse qual fosse o conteúdo de seus variados discursos, o objetivo era um só: se aproveitar das crenças e expectativas dos outros para atingir seus próprios interesses materiais. Era isso que tirava aquele brilho natural das pessoas e as deixavam tão opacas e robotizadas. Não podia vislumbrar em nenhuma delas a capacidade de mudar o status quo.

Só sabia que aquele era um lugar que lhe dava ânsia de vômito e pensou que nunca poderia se sentir parte daquela sociedade, tamanha sua repulsa a tudo que estava vendo. Simplesmente não podia ver um papel que pudesse desempenhar ali. Não se encaixava. Começou a sentir um grande incômodo. Dor física mesmo, generalizada e sem um ponto de origem claro. Um sentimento crescente de impotência. Angústia... Ah, não, chega! Isso é um pesadelo! Não quero mais sonhar com esse lugar nojento e essas pessoas fracas de espírito.

Foi então que Luciano percebeu que não podia acordar, até porque jamais estivera dormindo. Recuperou a compostura e ajeitou seu cabelo. Colocou aquele sorriso babaca no rosto, passou pelo porteiro fingindo que o respeitava, limpou sua mente e seguiu seu caminho, convencendo-se de que era feliz.

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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Relatos de uma ordinária manhã



por Eduardo Cozer

A cama está sempre tão quentinha a essa hora que o corpo não parece estar minimamente interessado em sair deste abraço e se levantar para dar “bom dia”. Sente um peso acima do normal nos ossos e seus músculos ficam reticentes em começar a trabalhar. Poderia ficar o dia inteiro ali esparramado, curtindo os resquícios de preguiça que vão se esvaindo paulatinamente a cada expiração. Até que ouve passos pela casa, água respingando na pia e o tilintar de talheres se espalhando sobre a mesa de madeira. O som de vida apoderando-se de forma gradativa do ambiente que há poucas horas era habitado pelo mais puro silêncio. Talvez se rolar pro lado ainda consiga engatar novamente naquele sonho, pondera.

Mas a barriga envia uma sucinta mensagem ao organismo na forma de um ronco. Assim, entende que não vai mais dormir. Espreguiça-se, esticando todos os membros do corpo, e abre a boca num demorado bocejo. Cambaleia nos primeiros metros a serem vencidos. A cabeça pendendo levemente à frente e balançando conforme o impacto das passadas trôpegas no chão da casa. A percepção do que é sonho e o que é realidade ainda não muito clara. Os olhos semicerrados, ofuscados pela luz solar radiante, ainda não funcionam perfeitamente. Todavia, isso não o atrapalha no deslocamento, pois o aroma do café fresquinho é seu melhor guia àquela hora da manhã.

Logo chega à cozinha. Senta-se e fica observando as pessoas que estão à mesa comerem. De manhã, naquela casa, todos costumam ser mais introspectivos, preferindo ler o jornal. O mais próximo que se chega de uma conversa é a troca de ruídos entre pai e mãe, que mastigam a comida com as bocas excessivamente abertas. O fato é que não come nada nos cafés-da-manhã, mas, ainda assim, gosta de participar da movimentação matutina da família.

Ainda cedo, a filha mais velha acaba brigando com a mãe por algum motivo bobo. Uma grita de cá, a outra acolá. Não se importa muito com isso, pois depois dessas brigas sempre lhe sobra uma sessão de afagos da mãe, ainda chateada com a rotina de discussões matinais com a menina, que sai varada para o seu quarto, deixando um rastro de raiva pré-adolescente nos aposentos pelos quais passa. Despende longo tempo no colo dela, curtindo aquele chamego. Às vezes chega até a cochilar. A filha mais velha, atrasada e irritadiça, sai às pressas para o colégio batendo a porta de casa sem se despedir. Quando voltar mais tarde estará bem mais dócil, tinha certeza.

Aí então desce do colo e vai brincar um pouco ao sol no quintal. Diverte-se por um punhado de horas correndo atrás de pássaros, descobrindo formigueiros – o que por vezes revela-se doloroso! – e apreciando o aroma das flores na jardineira. De repente chega a sua hora. Basta ver a cabeça da mãe para fora da casa procurando-o e já sabe o que é. Nem precisava mais escutar aquele velho assobio agudo. Sai em disparada e chega antes da ração cair quicando na grande tigela vermelho-desbotada com o nome “Bolota” gravado, por conta da mancha preta arredondada que tinha perto do traseiro. Late de forma enlouquecida, a baba consistente dependurada na base do focinho. Dá cabo da comida em poucos segundos e passa as duas primeiras horas da tarde à sombra da mangueira no quintal dos fundos. Deliciosa lombeira! Não podia reclamar da vida.

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domingo, 10 de outubro de 2010

Lembranças de um domingo



por Eduardo Cozer

Ainda lembra-se com assombrosa riqueza de detalhes. Tudo naquele dia parecia especial, até mesmo um velho ordinário com as mãos nos bolsos atravessando uma rua qualquer sem fazer nada demais. Nunca se esqueceu do velho, pois até ele fazia questão de participar do grande evento.

Era primavera e a brisa leve fazia as folhas de castanheira farfalhar. Sentiu um arrepio na nuca enquanto registrava no seu córtex cada milésimo de segundo vivenciado, empoleirada nos ombros do pai. Sua cabeça girava e gravava os acontecimentos ao seu redor. Tudo era igual e, ao mesmo tempo, novidade.

A textura das bandeiras, suas cores vibrantes e a maneira como davam forma ao deslocamento de ar. Eram azuis, eram vermelhas. O asfalto e as calçadas repletos de papeizinhos espalhados. O ar da primavera enchia seus pulmões e sentia-se disposta a cantar.

Vez ou outra algum sujeito desconhecido lhe dirigia o olhar e fazia alguma gaiatice, mexendo as sobrancelhas ou algo do gênero. Lembra-se claramente que alguns deles falaram com seu pai. Pudera, o assunto era o mesmo entre todos os passantes. Alguns até se arriscavam a predizer o resultado. A massa caminhava apressada em uma só direção e era reconfortante se sentir parte do todo. Próximo a entrada, viu alguns policiais, que detiam alguns sujeitos fanáticos e mais exaltados.

Então, posicionou-se na longa fila com seu pai. Entrou. A adrenalina no auge. Esperança no coração! Dos ombros do pai, pôde ver todos aqueles rostos que já tinha visto anteriormente na TV. Aperta “confirma”. Ela tinha apenas nove anos. Era a sua primeira vez na Festa da Democracia e mal podia aguardar sua vez de votar.

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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Habitué



por Eduardo Cozer

Pediu um copo de uísque meio debruçado sobre o balcão, o cotovelo esquerdo armado como se fosse uma asa quebrada sobre a pedra de mármore, a expressão carrancuda. Pelo menos uma dose de uísque não tinha como frustrar suas expectativas. Pessoas erram, mas não o uísque. Este era infalível.

Quem não o conhecesse pensaria se tratar de uma figura recém-saída de um reformatório daqueles para homens que usam camiseta regata e espancam suas mulheres antes de dormir um sono de pedra. Melhor que fosse assim. De fato estava dividindo aquele ambiente soturno, fedendo a vícios, com pessoas da pior categoria, de difícil definição. Mas que diabos! Era onde se sentia melhor desde quando podia se lembrar.

Um leve deslizar e o copo quadrado com três dedos da bebida cor de ocre saiu da mão do barman e se encaixou na sua mão direita perfeitamente. Deu uma rápida sacudida no conteúdo e virou tudo de uma só vez dentro da boca. Uma pausa de menos de um segundo para sentir o líquido explorar os cantos que nem mesmo a sua escova era capaz de alcançar, apesar das propagandas mentirosas que garantiam o contrário.

Então engoliu. Aquele gesto, para os mais atentos, parecia quase uma auto-flagelação. O brusco movimento em sua garganta acusando que, apesar de líquido, o uísque passou causando uma expansão maior do que sua traquéia comportava. Aquilo ultrapassava os limites físicos para os quais o canal fora projetado. Para quem viu, era possível dizer que houve uma enorme dilatação que desceu arranhando, queimando e, pior, gerando um já esperado desconforto. Acompanhado disto, uma contração facial aparentemente involuntária, igual àquela que fazia quando tinha que tomar creme de espinafre aos cinco anos. A diferença era a de que sua mãe não o estava pressionando a fazê-lo. Sequer havia algum tipo de vínculo com um prêmio, como uma mousse de chocolate, após a execução desta dolorosa missão. Não. Tipos que viram um copo de uísque daquela forma não estão interessados se vão ganhar sobremesa.

O resultado daquela experiência traumática, ainda que freqüente, para o seu organismo foi premeditado pelo menos meia hora antes de passar pela porta enferrujada e o letreiro brilhante cafona. E o barman que agora o encarava não tinha nada a ver com isso.

Mas isso já não importava mais. Acabara seu intervalo. Hora de voltar para assistir a aula de Ética. Um aceno de cabeça para os conhecidos. Desceu a ladeira rumo à escola mastigando um sanduíche de presunto e mais uma vez se foi...

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sábado, 2 de outubro de 2010

(IN)DECISÃO


por Eduardo Cozer

Já havia enrolado aquele cabelo castanho-escuro anelado em seu indicador esquerdo uma dezena de vezes. Pronto. Estava decidido que não era isso que o faria tomar uma atitude. Soltou suavemente o cacho que, tal qual uma mola, contraiu-se instantaneamente, retornando ao único vão em que poderia se encaixar naquela vasta cabeleira. Deixou a mão pesada escorrer pela face oleosa gerando atrito com o dedos, como se aquilo que buscava estivesse localizado logo abaixo da epiderme. E como pinicava! A mão espalmada ainda percorreu seus lábios, provocando uma grande força contra o queixo protuberante, antes de pender morta.

Suspirou profundamente, franziu a testa, os olhos apertados. Parecia estar recobrando a lucidez daquele estado catatônico em que mergulhou anteriormente. Por quanto tempo estivera absorto em pensamentos vagos, revirando sua memória, revisitando fotografias pálidas de momentos que havia vivenciado? Não sabia dizer. Girou o pescoço para a direita, depois para a esquerda com um semblante de curiosidade inexplicável, vindo de alguém que conhecia cada canto do recinto em que se encontrava já fazia onze anos.

Massageou o pescoço enquanto piscava os olhos de forma alucinada. Era como se um flash tivesse acertado suas pupilas em cheio e, aos poucos, as formas iam voltando a ganhar contornos, cores e texturas. Agora, todo movimento parecia inédito, ousado demais. Estremeceu e sentiu os pêlos ao longo de todo o seu corpo se arrepiarem de súbito. Então era isso...

Desfrutou da deliciosa sensação da adrenalina percorrendo seu corpo, deixou o peito se estufar, os músculos se retesaram e ganharam vida como num passe de mágica. Levantou-se e deixou para trás aquela famigerada figura, sombria e cinzenta, fraca e incapaz, impotente e encolhida. Sujeitinho desprezível, pensou consigo mesmo. E assim, estava decidido. Começar do zero, tudo de novo. Apostar em si mesmo contra todas as probabilidades e previsões. Optara por se aventurar a viver em vez de ver a vida passar.

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