quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nas trincheiras de uma fictícia guerra brasileira


por Eduardo Cozer

O coronel Brito já estava ficando velho demais para aquela coisa toda de guerra. O dia inteiro era consultado pelos tenentes-coronéis, majores e às vezes capitães. Por deuses! Não se lembrava de ser tão inseguro quanto os jovens líderes que o Exército formava agora. Na sua época tudo era mais simples. Falava-se menos, fazia-se mais e, por incrível que pareça, as coisas funcionavam melhor do que hoje em dia. De maneira que, enquanto alguns tenentes cabeças-ocas de olhos assustados e calças borradas o interrogavam, pegava-se já pensando em quando penduraria seus coturnos e poderia cuidar da sua fazenda no meio cerrado brasileiro na “santa paz de Deus”, como gostava de falar.
- O quê é que você falou agora, meu filho? Repita com calma, por favor – perguntou o coronel.
- Senhor, o major Vieira discorda em avançarmos. Ele entende que estaremos deixando um território privilegiado desnecessariamente e devemos esperar o inimigo tomar a iniciativa – disse o capitão Souza.
- E posso saber por que ele mesmo não vem até aqui falar isso para mim? – retrucou o coronel Brito, as mãos apertando os braços de sua cadeira. Sentia-se ferido no seu orgulho e sua vontade era de sugar o sangue do trêmulo capitão que se postava à sua frente.
- Por que ele entendeu que era uma situação emergencial em que não podia perder tempo com negociações que não levassem a uma decisão imediata – o capitão Souza já suava como um porco dentro da tenda abafada, em parte pelo calor, em parte pelo enorme nervosismo – Ele foi diretamente ao general Fonseca, senhor.
- Há! Azar o dele! O Fonseca vai colocá-lo em seu devido lugar na nossa hierarquia... – divertiu-se com a idéia do sermão que o general daria no major.
- Mas, senhor, este é o ponto. Minha vinda até aqui é apenas para comunicá-lo que a sugestão do major Vieira foi acatada. A infantaria não vai avançar e o bombardeio foi cancelado – atentou o capitão, com a farda já encharcada.
- Cancelado? Como assim cancelado? Quem eles pensam que são para decidir isso sem me consultar? – agora o coronel Brito, furioso, empertigara-se na cadeira e estava quase saltando por cima da mesa na jugular do capitão.
- Senhor, é que, hum... – gaguejou o capitão Souza.
- Desembuche logo, homem! O que é que aconteceu? Quero saber de tudo antes de falar algumas verdades diretamente ao general! – rugiu o coronel.
- Senhor, é que tivemos um problema. O aspirante indicado pelo senhor cometeu um erro no pedido de munições. Neste momento estamos praticamente sem munição para fazer uma ofensiva. E o carregamento só deverá chegar em três dias. Não sabemos como isso foi acontecer, mas aconteceu – concluiu o capitão Souza, a cara vermelha como um tomate, os olhos fixos num ponto imaginário atrás da cabeça do coronel.
- Você está me dizendo que neste exato momento nossos homens estão nas trincheiras apontando armas descarregadas para o inimigo, capitão Souza? É isso que você está me dizendo? – perguntou o coronel Brito, perplexo.
- Nem todos, senhor – disse o capitão, visivelmente desconfortável – Alguns ainda possuem balas na agulha – complementou, como se a observação fosse amenizar de alguma forma o problema.
- Minha Nossa Senhora, era só o que me faltava... Você dá ouvidos uma vez na vida à sua esposa e é isso que acontece... – deixou escapar o agora murcho e impotente coronel Brito – Procure o meu cunhado, digo, o aspirante Silva e diga para vir até aqui imediatamente! – determinou, pronunciando a patente do irmão da esposa como se fosse um pedaço de limão azedo no canto da boca.
- Agora mesmo, senhor! – respondeu prontamente o aliviado capitão Souza.
Ao passo que, antes de liberá-lo para seus afazeres, o coronel quis saciar sua última curiosidade com o tão bem informado capitão.
- Capitão Souza, você disse três dias? Três dias inteiros? Por que toda essa demora se estamos tão próximos do posto de fornecimento de munições? – questionou mansamente o coronel Brito.
E o capitão novamente contraiu-se, tenso, e pensando na melhor resposta para dar ao seu coronel. Pensou consigo mesmo que qualquer um que estivesse naquela tenda poderia ouvir seu coração martelando o peito de dentro para fora.
- É... Hum... Bom... É que... É carnaval, senhor... – engoliu a seco.
E o coronel, novamente imóvel, parecia não mais prestar atenção ao mundo exterior. Entrara em um transe profundo, o olhar perdido e desolado. Anos de exército para escutar toda aquela patacoada! E assim, petrificado como uma estátua de um derrotado militar, ficou a tarde inteira. O capitão Souza retirou-se vagarosamente sem saber muito bem o que devia fazer, deixando o coronel Brito sonhando com sua fazenda, seus cavalos, sua esposa e a lápide de seu cunhado ao lado do chiqueiro, seu lugar de direito e merecimento aos serviços prestados ao exército brasileiro.


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