quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A sutileza entre lenda e a realidade

por Eduardo Cozer

A lenda começou já faz um tempo, em algum momento no início do século XIX. Nico era querido no vilarejo onde vivia pelo seu sorriso fácil e o poder de demonstrar interesse por todas as pessoas, sem distinção. Gostava das coisas simples e considerava uma grande conquista se conseguisse fazer um conterrâneo que vagasse cabisbaixo pelas ruas atoladas de neve um pouco mais otimista e confiante perante a vida.

A primeira vez que Nico incorporou a figura de São Nicolau de fato foi num seis de dezembro e ele trajava roupas que o tornavam mais parecido com uma figura bíblica, um bispo talvez. De barba feita e nada de cabelos brancos, aliás. Na primeira aparição na História da figura do Papai Noel, o mais importante na verdade era a missão de entregar "fazedores de sorrisos", "gatilhos de gargalhadas" e "escapamentos de alegria" numa terra de frio extremamente rigoroso. Munido de presentes, São Nicolau não esqueceu de uma criança sequer do pequeno vilarejo na Lapônia, Finlândia. E cumpriu sua missão sem ter sido visto por ninguém.


Entretanto, diferente dos dias atuais, não foram todas as crianças que ganharam presentes que desejavam. As crianças de comportamento inadequado em suas casas, desrespeitosas com mais velhos e autoridades, mimadas e descompromissadas com os estudos ganharam uma pedra de carvão, como forma de refletirem sobre seus atos. Nada mais inútil para uma criança do que um pedaço de carvão. Desta forma, com o tempo, e mais rapidamente entre os jovens, o mito do Papai Noel se expandiu. E da mesma maneira, Nico percebeu como poderia distribuir sorrisos pelo mundo inteiro.

Correspondeu-se com homens e mulheres de integridade inquestionável para que o ajudassem a tornar a lenda real para mais e mais crianças. E, desta forma, a cada ano que passava, todas as crianças que tiveram bom comportamento eram presenteadas e as que não haviam se comportado bem recebiam pedras de carvão. A irmandade foi crescendo até se tornar uma seita secreta com motivações altruísticas. A partir daí surgiram as fantasias, as renas, a chaminé e demais adereços. Para a magia ser completa é necessário que haja uma capa de segredo sobre a realidade.

O que se comenta é que até hoje pessoas são recrutadas ao redor do mundo inteiro para se tornarem responsáveis pela missão de entregar "fazedores de sorrisos", "gatilhos de gargalhadas" e "escapamentos de alegria" às crianças de sua região. E se o seu Natal e de seus conhecidos tem sido vazio e sem magia, talvez seja porque falte alguém com uma centelha do espírito do já falecido Nico, capaz de dar um sorriso fácil e demonstrar interesse pelas pessoas, pelas redondezas da sua região. A questão é se você quer fazer parte da magia ou do Natal vazio e sem graça.


* A Usina de Contos deseja um Feliz Natal, cheio de magia e sorrisos, a todos os seus leitores!
** Apesar de conter algumas informações tidas por algumas pessoas como verídicas, este conto não tem compromisso com a verdade, mas sim com a passagem de uma mensagem.

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domingo, 19 de dezembro de 2010

Lições sobre um cavalo selvagem



por Eduardo Cozer

O cavalo selvagem trotava despreocupadamente pelo vasto mar de capim, como fizera por toda sua vida. Gostava de testar a explosão dos seus músculos e sentir o vento matinal pentear sua crina castanho-clara. Naquele fatídico dia, bebeu da água mais pura do lago que visitava diariamente. Mas então, quando o sol já havia atingido razoável altura na abóbada azul sobre sua cabeça, o jovem cavalo selvagem alcançou os limites de terras conhecidas até então. Nunca havia passado da densa floresta à sua frente.

- Por que não? - lançou o desafio para si mesmo, fungando com suas enormes narinas, enquanto curtia a adrenalina da possibilidade de viver uma grande aventura.

- E se o capim do lado de lá for ainda mais saboroso? E a água mais pura? - pensou além.

De maneira que nada mais podia detê-lo. E ele foi. Atravessando a floresta, sentiu calafrios e suas orelhas pontudas captaram sons estranhos em toda sua volta repetidas vezes. Sua imaginação eqüina lhe pregava peças e o fazia pensar em criaturas assustadoras que seriam capazes de dominá-lo toda vez que ouvia um ruído diferente vindo de trás das árvores.

- Toda grande recompensa exige uma árdua provação - convenceu-se, determinado a prosseguir. Afinal de contas, era um cavalo selvagem e precisava mais do que uma floresta escura para tirá-lo do seu caminho.

Ao sair da floresta densa, pode avistar algo novo, totalmente diferente. Era como se fosse uma toca de algum bicho muito, muito grande. E havia uma área ainda maior cercada por algo que pareciam troncos deitados e metodicamente empilhados. Muito curioso. Lá avistou um cavalo como ele, porém malhado, gordo e cheio de ornamentos sobre si. No mínimo excêntrico.

- Saudações, amigo eqüino! Como vai você? - perguntou cheio de entusiasmo o cavalo selvagem, maravilhado com a imponência de tudo que o cercava. Havia de ter chegado num lugar melhor.

- Quem é você? Eu já o vi antes? Duvido muito! Hummm... Como você chegou deste lado? Oh não! Rápido, rápido, esconda-se antes que eles o vejam - disparou o cavalo gordo de olhos ansiosos. Era óbvio que ele sabia de algo que seu interlocutor desconhecia completamente. E esta defasagem de informação o deixava ainda mais histérico.

- Calma, calma... O que há com você, meu amigo relinchador exagerado? Vejo um belo ambiente, grama verdinha a se perder de vista, água a um trote de distância... O que eu deveria temer por aqui? Acabo de vir da floresta. Não há nada lá. Ela é um pouco assustadora para quem não conhece, eu sei, mas... - falou e falou, posando de herói, até ser interrompido abruptamente.

- Tarde demais! Eles estão vindo, sua mula!!! Corra!!! - alertou mais uma vez o cavalo gordo e malhado.

- Quem? Aquelas figurinhas ridiculamente pequeninas? - indicou com seu pescoção comprido os quatro homens que vinham caminhando em sua direção - É a eles que devo temer? - relinchou longamente o cavalo selvagem do débil desespero do outro.

Foi então que, mais rápido do que uma batida de coração, sentiu uma pontada forte na sua anca. Uma dor profunda e lancinante. Passados alguns instantes, era como se seus músculos não mais o obedecessem. Ouviu mais alguns apelos em vão do companheiro que havia tentado alertá-lo mas já não conseguia discernir o que era real e o que era penumbra. Desabou inconsciente.

Desconhecia rédeas, selas e estribos. Nunca havia experimentado rações, água parada no bebedouro e a mobilidade estabelecida pelo comprimento de uma corda amarrada ao seu pescoço. Começava a entender que nada tinha de bom no lado de cá, além da floresta, que fora, de certa forma, sua proteção por tantos anos. E, acima de tudo, não suportava a visão do cavalo gordo e malhado que sempre lhe direcionava um olhar penoso e sem vida.

O jovem cavalo selvagem descobriu que para algumas duras provações impostas pela vida não havia recompensa equivalente. E descobriu da pior maneira possível. Tornou-se um velho cavalo domesticado e infeliz. 

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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Flores para Suzana



por Eduardo Cozer

Naquela manhã, Arlindo era a felicidade materializada em pessoa. Carregava um sorriso suave e abobalhado estampado nas faces e os pés não pareciam tocar o chão. O nó folgado em sua gravata e a parte posterior da perna esquerda da calça presa pela meia social contrastavam com a cautela com a qual o homenzarrão carregava o buquê de flores. Era nítido que Arlindo nadava a largas braçadas pelo oceano límpido do amor e apenas isso importava.

Deu uma passadinha à frente da casa dela antes de seguir para o batente. Ameaçou bater à porta, mas achou melhor apenas deixar as flores à soleira. Quando desceu os degraus da porta da casa da amada, parecia ainda mais anestesiado para a vida. Arlindo vivia um sonho rosado, brilhante, com um lindo rosto e belo corpo. Sentia que alguns homens que passavam o olhavam com o canto dos olhos, invejando-o pelo gosto pela vida que esbanjava. Naquela manhã, Arlindo se sentia amplamente superior a todos eles. Estava amando.

Suzana! Ah! Quanto mais pensava naquele nome, mais entorpecido ficava. Tinha algo nele... Talvez fosse um toque de aroma de dama da noite, talvez a sonoridade ou talvez por lembrá-lo da mulher amada. Só talvez... Enquanto isso, tatuava no seu córtex aquele nome, cada vez que o repetia para si mesmo. Era como se não precisasse de mais nada para viver. Respirar, se alimentar ou beber água? Para quê? Ele tinha Suzana para amar.

O dia de trabalho em seu calmo escritório foi interrompido uma série de vezes por culpa do seu próprio subconsciente, toda hora sabotando-o e dizendo: “Chega de trabalhar, homem! Vá ver Suzana!”. Às dezoito horas em ponto cedeu às suas vontades. Era sempre o último a sair e isso lhe dava ainda mais tranqüilidade de passar despedindo-se da secretária boquiaberta e colegas atônitos naquela tarde. Mal a porta bateu às suas costas, já havia um boato sobre seu estado de saúde e outro sobre sua saída do escritório. Tolos! Se pelo menos eles conhecessem Suzana, perceberiam as vidas medíocres que levam... 

No caminho de volta, obviamente, desviou do caminho mais curto para casa. Escolheu o caminho do seu coração. Sentia-se um jovem indo buscar sua companhia para o baile de formatura, caminhando apreensivo pela calçada e dando um último tapa no topete desajeitado. Foi então que a viu. Suzana! Ah, Suzana... A dor. De braços dados com um João Qualquer, às gargalhadas, ela descia a ladeira, despreocupada, voltando para casa. O casal feliz passou ao seu lado. O rapaz lhe deu um breve cumprimento com a cabeça. Arlindo os deixou passar, enfiou a cabeça entre os ombros e fez uma promessa a si mesmo. Tinha de ser a última vez. Nunca mais colocaria grandes expectativas nos seus amores platônicos.


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domingo, 12 de dezembro de 2010

Boa ação do dia



por Eduardo Cozer

Gente boa. Um sujeito legal. Grande figura! São alguns dos adjetivos que você poderia escutar se estivesse falando sobre Jurandir Justo, o Seu Justo, com conhecidos, parentes e familiares do homem. Exemplo de pai de família, marido perfeito, modelo de ética no trabalho e como cidadão. Curioso para conhecê-lo? Pois bem. Vamos acompanhá-lo numa programação em família rumo à praia no domingo de manhã.

Seu Justo sai com seu carro da garagem em alta velocidade, pois as crianças endiabradas tinham dado trabalho à mãe para passar protetor solar, e, assim, os Justo estavam um pouco atrasados. O vizinho que é quase atropelado pelo veículo saindo voando pela rampa vai entender. Afinal, Seu Justo havia de ter um bom motivo. Ele também não baixa o vidro para cumprimentar o porteiro nesta manhã. Não é por mal, mas não ia com a cara daquele nordestino. Dizia que seu santo não batia com o dele. Nada mais justo.

Pior que a manhã conturbada está apenas começando. Nada consegue tirar Seu Justo tanto do sério como o trânsito a caminho da praia. Não suporta dar a passagem para nenhum daqueles domingueiros que resolvem tirar suas carroças de casa em dia de praia. A buzina do seu carro é acionada dezessete vezes. Para as crianças pararem de encher sua paciência, compra salgadinhos com os ambulantes no meio da rua. Como bom pai que é, pede o lixo para as crianças e o despeja pela janela. Não pode conceber a idéia do seu carro cheio de farelos que podem atrair baratas. É preciso dar o exemplo. Nada mais justo.

Chegando à praia, define o local na areia onde a família deve se estabelecer. Discute por três vezes com uma senhora mal humorada que não entende que seus filhos precisam de espaço para brincar, correr e chutar areia nos outros. Mulher estúpida, ela que se mude de lá. É o que acaba acontecendo...  Carrega a filha no colo, aos prantos pelo fim do dia de diversão. Precisa dar algumas boas palmadas nela para que as outras crianças aprendam que chorar é errado. Nada mais justo.

Ao tirar seu carro da vaga, ao invés de dar dois reais ao guardador, dá uma nota de cinco “pro da cervejinha”. Vai embora abençoado pelos agradecimentos do guardador que o chama carinhosamente de “chefe”. Seu Justo dá um sorriso para a esposa e se reconforta no assento do seu carro. Missão cumprida. Poderia dormir tranqüilo por outra noite mais. Havia feito a boa ação do dia.

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domingo, 5 de dezembro de 2010

Um estranho à porta



por Eduardo Cozer

Quem olhava para Fernando ficava com uma pontada de dúvida sobre suas intenções enquanto o ônibus vencia cada metro de asfalto da longa rodovia no interior de Minas Gerais. Cada passageiro ali tinha os seus motivos para estar viajando em plena madrugada rumo ao Rio de Janeiro e não ousavam partilhá-los com os demais.

Muitos estavam cansados, com as pálpebras pesadas, e gostariam de poder se recostar na poltrona e dormir, entretanto, poucos conseguiam se sentir suficientemente à vontade para isso. Fernando estava um tanto apreensivo. Suava exageradamente e parecia estar repassando algum tipo de discurso mentalmente, pois seus lábios balbuciavam algumas coisas que ninguém conseguia captar, por mais silencioso que o ônibus estivesse.

Fernando fazia alguns movimentos contidos de cabeça e olhou ao redor inúmeras vezes quando percebeu que poderia estar sendo observado pelos outros passageiros. Não gostava de ser o centro das atenções. E assim, pelo fato de não querer parecer um completo maluco para os olhos curiosos que o observavam, acaba agindo de maneira suspeita. Quanto mais se esforçava, mais falhava nessa tarefa. Era um ciclo vicioso.

As oito horas de viagem passaram muito rápido para Fernando e, antes do que esperava, estava diante do seu grande desafio. E não se sentia completamente pronto para encará-lo. Subiu a soleira de madeira acinzentada. Ouviu um grande rangido vindo sob seus pés e percebeu como a escada era velha. Ergueu os olhos suavemente e logo entendeu que a casa inteira era tão antiga quanto as madeiras da escadinha. Respirou fundo.

Titubeando em frente à porta, pensou que este era o último momento em que poderia repassar seu discurso. As palmas de suas mãos só faltavam pingar de tanto suor acumulado. A garganta estava apertada de tal forma que era difícil engolir a própria saliva. Isso porque até mesmo a bile que subia de seu estômago o fazia sentir como se sua barriga tivesse dado um nó por dentro. Desembaralhou o bolo de palavras que flutuavam em sua cabeça e decidiu. A hora era agora e tinha que estar pronto.

O “toc-toc” na porta foi um tanto surreal e Fernando ficou na dúvida se não havia sido apenas as batidas de seu coração gerando aquele som que reverberou nos seus tímpanos. Seus sentidos estavam aguçados. Nunca esqueceu aquele som. Nem mesmo a forma como a porta balançou quando insistiu com mais duas batidas secas. Ouviu o arrastar de passos vindo de dentro da casa e sentiu o sangue que corria em suas veias esquentar. Já havia passado pela situação de estar à porta tantas outras vezes, mas esta, de longe, era a mais especial que podia se lembrar. Ouviu uma voz abafada perguntar:

- Quem é?

- Sou eu – respondeu simplesmente, deixando as emoções tomarem conta.

Nenhuma das duas frases estava no seu roteiro, tamanha a obviedade. Entretanto, foram mais do que suficientes para estabelecer a conciliação do pai com o filho que não se viam há exatos 28 anos. A espera chegara ao fim. Fernando sabia finalmente qual era a sensação de ter um pai.


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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Dia normal de ponte aérea no Brasil



por Eduardo Cozer

Passou pela porta envidraçada e adentrou num espaço amplo com ar refrigerado. Não conseguia mais entender o conceito de conforto sem a existência do ar condicionado. Suas passadas decididas e olhar injetado o faziam parecer um predador em estado de alerta máximo, exceto pelo fato de que estava de terno e gravata e carregava uma pasta preta cheia de papéis.

Reduziu consideravelmente a velocidade e posicionou-se atrás de outro senhor, trajado de maneira bastante parecida. Comemorou internamente o drible que conseguiu dar em uma família desorientada alguns metros atrás, fato que lhe fez ganhar duas posições na fila. Era meio estúpido, para falar a verdade, mas, se ele não fizesse desta forma, os outros fariam. De modo que era melhor comemorar esta pequena vitória do que amargar os últimos lugares.

Passaram-se 15 minutos até que fosse sua vez. Procurou demonstrar simpatia à atendente acreditando que isso poderia resguardá-lo de algum problema ou imprevisto. Doce destino... Descobriu que seu vôo estava atrasado e não havia nada que se podia fazer. Questionava-se sobre a utilidade daquela pessoa que lhe atendia se, sempre que surgia um problema – e já havia vivenciado muitos – nunca era possível fazer nada a respeito. Achou melhor não externar sua opinião e dirigiu-se ao segundo andar do aeroporto Santos Dumont.

Bufou, impotente, diante de mais uma fila. O ser humano adora filas! Levou mais 10 minutos até passar por um aparato que detectava se ele era ou não uma ameaça letal aos demais passageiros. Passou sem problemas, xingando internamente os passageiros de primeira viagem que viam naquele procedimento um verdadeiro entretenimento. E esquecendo que agira exatamente da mesma forma na sua estréia em aeroportos. Tolos, idiotas, pensou.

Daí para frente, mais espera. Sentou, leu uma revista, descobriu o novo portão do seu vôo atrasado, percebeu que ele estava mais atrasado do que a previsão de atraso que havia recebido, reclamou mais algumas vezes com os funcionários mocos da sua companhia aérea que nada faziam, entrou numa fila apinhada de gente 30 minutos antes de embarcar, olhou seu relógio quando já haviam se passado 45 minutos e, enfim, conseguiu entrar depois de um empurra-empurra de classe para ver quem entra primeiro num lugar onde os assentos já estão marcados. Não gostava de Zé Ramalho, mas pensou consigo “Ê, ô, vida de gado...”.

Dia normal de ponte aérea no Brasil.

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domingo, 28 de novembro de 2010

Tudo tem um preço?



por Eduardo Cozer

Os pés calçados em sapatos de couro faziam um barulhinho gostoso ao mover as pequenas pedrinhas do solo. Por isso mesmo, o doutor Reinaldo não fazia um movimento natural de quem caminhava, enfiando os pés mais ao fundo para gerar mais daquele som agradável aos ouvidos. Sentia-se com o espírito elevado.

O motivo para essa sensação sublime não se devia apenas ao contato das solas gastas de sapato com o cascalho. O ar cheirava a verde e tinha um frescor especial que preenchia os pulmões e o fazia querer levitar. Reinaldo sentia sua vista mais aguçada, tamanha a variedade de cores e texturas que podia enxergar numa rápida passada de olhos pela paisagem que o cercava. Era como se suas pupilas estivessem sendo massageadas pelas belezas naturais.

Chegou à base de um morro de subida leve. No topo encontravam-se outros três homens. Sua felicidade estava completa! Caminhou até eles, determinado, e sentindo-se cada vez mais bem disposto conforme o ar puro ia circulando pelo seu organismo. Reinaldo chegou, um pouco ofegante devido à atividade física – naturalmente – e estendeu a mão direita ao homem mais próximo.

Cumprimentou os outros dois homens e todos eles trocaram algumas palavras e muitos sorrisos. Dali de cima tinham uma vista privilegiada da área mais ao norte e todos apontaram lá para baixo, demonstrando bastante conhecimento. Um deles puxou um mapa e traçou algumas linhas de tinta com sua caneta metálica. Estava tudo certo, então. Reinaldo sacou um rádio do bolso do seu colete e decretou:

- Pode prosseguir com a operação, câmbio.

Foi o último dia em que alguém desfrutou do puro som do cascalho sob os pés, do frescor do ar natural e das belas formas assimétricas caprichosamente geradas pela Mãe Natureza. Graças ao doutor Reinaldo. E à sua madeireira que trouxe empregos para a região, preços mais baratos dos derivados da madeira e que foi amplamente aceita pelo governo e população. Afinal, tudo tem um preço.

Tudo tem um preço?

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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Colo de pai



por Eduardo Cozer

Acorda cedo, engole o pão com café-com-leite.

- Vai logo tomar esse banho porque já estamos atrasados! – grita a mãe lá da cozinha.

Que aventura! – ela pensa enquanto faz espuma com o sabonete contra a barriga. Sai correndo do banheiro, toalha na cabeça, os pés deixando pegadas d’água pelo corredor. Bota a roupa sem pensar, a cabecinha cheia de empolgação com o que está por vir. Tinha sido difícil dormir na noite anterior, tamanha a excitação.

- Confere a sua mochila pra ver se não esqueceu nada! – alerta o pai, mente brilhante idealizadora desta missão.

Vai até a mesa da cozinha e cata um lanchinho pra viagem de volta. Parece mais um dia corrido de semana mas hoje é sábado, dia de brincar no parque. O pai pilota com alta perícia, cortando todos aqueles "domingueiros", e estaciona de primeira. O irmão sai correndo tresloucadamente assustando as outras famílias. Bicho solto, bichinho feliz. Ela corre atrás, às gargalhadas, entrando no clima.

Joga bola com o pai e o irmão até ralar os joelhos e ir correndo chorando, assustada, para a mãe passar anti-séptico e fazer um curativo. Brinca com as bonecas que estavam aprisionadas em sua mochila. Ajuda a mãe a montar o piquenique. Como boa mocinha que já é, vai até o pai e o irmão e convoca-os para o almoço. Corre mais, joga mais, brinca mais. A sensação, ao finalzinho de tarde, é que ela tem camadas e mais camadas de suor seco sobre seu corpo. Uma sujeira natural de quem aproveitou ao máximo o dia de sábado.

Tá acabando o dia e todos começam a levantar o acampamento. Deita-se no chão e se finge de morta.

- Ih... A Belinha dormiu – determina o pai, com um risinho irônico no rosto. O riso de alguém que é ludibriado toda semana mas não se importa. No fundo, no fundo, ele também gosta.

O pai pega ela no colo para levá-la até o carro. Ah, adorava curtir estes poucos segundos de colo do papai. O cansaço que se abatia sobre o seu corpo – especialmente seus pés – combinado à sensação de levitação era tudo que mais gostava nos dias de brincadeira no parque. 

Valeu à pena. Sábado que vem tem mais.

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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nota Extraordinária

Após uma semana intensa de dedicação a projetos pessoais de Eduardo Cozer, a Usina de Contos retoma sua agenda normalmente.

Boa leitura a todos!

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domingo, 14 de novembro de 2010

Viagem de um nobre inglês



por Eduardo Cozer


A viagem já durava três dias e Christoph não via nada que pudesse animá-lo ao horizonte. Para todos os lados que olhava só havia verde e mais verde. E se o fato de dormir poucas horas nas últimas noites para tentar acelerar os avanços da viagem já o incomodava, a chuva grossa também não fazia menção de parar. Perder a referência do ponto brilhante de luz no céu apenas o deixava mais frustrado. Sem contar que as nuvens negras sobre a sua cabeça sempre o deixavam mais inseguro. Seu povo acreditava em presságios.

Além disso, os pingos tamborilando no seu cocuruto já começavam a deixá-lo extremamente irritado e impaciente com todos ao seu redor. A água das chuvas é como um visitante indesejado que vai entrando pela casa indiscriminadamente. E Christoph volta e meia sofria com alguns tremeliques devido a gotas d’água que entravam pelas frestas da sua armadura e rolavam caprichosamente sobre os pequenos pelos ao longo das suas costas, fazendo cócegas. Pelo que ouvira dos companheiros de viagem, eles já deveriam ter chegado ao seu destino. Inferno!

Direcionou um olhar sombrio para o líder da expedição, Sir George Lockeheart, um almofadinha que pensava merecer o tratamento de nobre que recebia, mas que não parecia ter a menor competência para planejar uma viagem curta de míseros três dias. Odiava fazer parte da sua guarda pessoal, pois Sir George só fazia viagens esporádicas para visitar outros nobres ou membros do clero. Nada de guerras! O pior de tudo é que a chuva só fazia piorar e a estrada que seguiam, um trecho de terra em meio à imensidão de capim, já era um lamaçal difícil para suas montarias transitarem sem correrem riscos de quebrar as patas. Desta forma, Sir George achou melhor armar sua tenda e deixar seus homens à sorte da proteção da copa de uma grande faia à beira da Floresta de Wyre.

Assim, Christoph decidiu fazer um reconhecimento do perímetro onde Sir George havia decidido acampar. Destacou mais um homem para acompanhá-lo a leste e dirigiu outros dois a oeste, deixando mais cinco próximos à tenda do nobre líder da expedição. A noite caiu silenciosa e após uma tempestade raivosa, a madrugada trouxe um tom rosa-azulado ao céu do novo dia. Sir George acordou com uma estranha pontada no peito. Uma espécie de onisciência do que estava acontecendo mesmo durante o período em que estava dormindo. Deu uma rápida coçada nos olhos cheios de remela amarelada e foi logo esticando o pescoço comprido para o ar das primeiras horas da manhã. E foi então que testemunhou uma cena de horror inesperada.

Reconheceu alguns de seus homens pendurados despidos nos troncos robustos da nogueira, dentre eles Christoph. Outros dois tinham seus corpos decapitados e empalados em lanças. Tinha diante de si um grupo de aproximadamente vinte bárbaros que sorriam mostrando dentres podres e rostos imundos. E os malditos haviam tirado a sorte grande. Conseguiram um refém de sangue azul e, se tudo desse certo, teriam prata para o próximo ano inteiro. Fartura de comida, cerveja e mulheres! Sir George bufou, ajoelhou-se na lama e chorou como uma garotinha. Sua viagem chegara ao fim.

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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Baboseiras sem sentido e a felicidade


por Eduardo Cozer

Sete e catorze da manhã. Arnaldo achava engraçado como o relógio mostrava sempre a mesma hora ao espichar a vista subitamente para a parede da cozinha, logo antes de engolir um copo d’água gelado e sair às pressas para o trabalho. Sempre sete e catorze!

Seu dia começava assim: acordava, às vezes se demorava mais na cama, às vezes não, às vezes tinha café pronto, às vezes ele mesmo tinha de fazer, tomava banho pensando no que deveria fazer ao longo do dia, vestia-se, penteava os ralos cabelos que lhe sobravam, despedia-se da mulher, e, o relógio, debochadamente, sempre marcando as tais sete horas e catorze minutos antes de Arnaldo engolir a bendita água. Era como se tivesse feito um pacto com o diabo para sair de casa todo dia à mesma hora e não se lembrasse mais.

Quando botava o pé direito na calçada do seu prédio na Nossa Senhora de Copacabana o pensamento já estava longe. Para ser mais preciso, estava na pilha de papéis em seu escritório de advocacia localizado na movimentada Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Tanto é que nos 28 anos em que morava no mesmo local, nunca havia reparado no sujeitinho que ficava ali perto, uma rua abaixo, na Avenida Atlântica, distribuindo quadros a quem lhe dava a atenção. Foi aí que Arnaldo o viu, reparou e então ouviu:

- Senhor, tome a sua arte e tenha um ótimo dia! – cumprimentou o homem, estendendo o braço esquálido que segurava um quadro com uma moldura de madeira barata.

Arnaldo rejeitou a oferta sem dar muita atenção dizendo apenas:

- Não, não, meu amigo. Tô sem dinheiro! – ainda preocupando-se em justificar a recusa pelo menos. A entonação do “amigo” sugerindo exatamente o contrário. Seu humor era ácido pela manhã.

- Mas quem foi que disse que eu estou cobrando? É de graça! É pra você, meu querido! – falou o artista de rua, sorrindo de orelha à orelha – Pode pegar! – reforçou.

Sinuca de bico. Arnaldo sempre tivera esse roteiro pronto na sua cabeça. O cara humilde chegava, tentava empurrar o produto de qualidade questionável por um preço de deixar maluco qualquer varejista honesto no mercado e ele recusava. Os papéis eram bem claros. Mas aí vem esse sujeito e diz que é de graça? Não pôde se conter. Girou o tronco e desembestou a falar:

- ‘De graça’ você disse? Então posso pegar esse quadro e ir embora sem que você ganhe nada por isso? É isso mesmo, amigo? – indagou com um ar irônico, como se sua pergunta pudesse colocar juízo naquela pobre cabeça desprovida de intelectualidade. Pela primeira vez pousou seus olhos no quadro. E viu que era bom!

- Sua felicidade é o meu pagamento! – respondeu com uma sinceridade digna de um político. Não um político qualquer, mas daqueles que tentavam as eleições presidenciais.

- Ó – avisou Arnaldo – Vou levar então, hein? – agora já estava rindo de toda a situação. De repente percebeu como aquela figura magricela, no fim das contas, era carismática. Sua serenidade passava tamanha tranqüilidade que Arnaldo já havia se esquecido do horário do trabalho.

- Me deixaria muito feliz se o levar! E, se quiser voltar amanhã, terei uma obra nova para você – prometeu.

Ao que Arnaldo não pode mais sustentar a alegria fingida e explodiu em indignação:

- Pelo amor de Deus, homem! O que está acontecendo?! Você acha que vai ganhar algum dinheiro desse jeito?! Como vai melhorar de vida? Você não pode sair distribuindo estes quadros por aí assim, ora bolas! – Arnaldo já estava com os fiapos de cabelo desarrumados e com veias saltadas nas têmporas suadas sob o sol matinal da orla carioca.

E o homem sem nome simplesmente retrucou:

- Agradeço sua preocupação, nobre homem. Mas se o que te faz feliz é ganhar dinheiro, corra atrás do dinheiro. Entretanto, não force outras pessoas a seguir o mesmo caminho que você. O que me faz feliz é fazer outras pessoas felizes e, até o momento, creio que estou no caminho certo. O resto é o resto – o pobre maltrapilho pareceu até ganhar uma aura reluzente após proferir ensinamentos tão cheios de significado.

Diante dessa resposta, Arnaldo fechou a matraca, colocou o quadro debaixo do braço e, ainda confuso e atrasado, retomou o caminho do trabalho. Ficou pensando no que o sábio homenzinho disse em vários momentos daquele dia. Será que tinha razão? Arnaldo até pensou se era aquela pilha de processos que o faziam de fato feliz.

- Rá! Que baboseira sem sentido! – pegou-se caçoando do vagabundo da rua que achava ter encontrado a fórmula da felicidade.

No dia seguinte, o artista de rua aguardou aquele senhor questionador aparecer novamente para pegar mais um quadro, ou melhor, mais uma pitada de felicidade. Mas Arnaldo não apareceu. Havia descoberto o que lhe fazia feliz. Retomou seus ensaios ao piano. Nunca mais se enterrou na pilha de processos do seu escritório apertado no Centro do Rio. E descobriu que o relógio da parede da cozinha mostrava outros horários além das sete e catorze. Meses depois, sua primeira composição nasceu de uma inspiração vinda de um certo quadro com uma moldura barata pendurado na parede da sala. A obra do homem que distribuía arte estava completa.

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domingo, 7 de novembro de 2010

Patologia ou obra do sobrenatural?



por Eduardo Cozer


O jovem doutor era uma sumidade em matéria de dermatologia e nem nos seus sonhos mais fantasiosos poderia imaginar que chegaria numa situação como esta. Acordou pela terceira vez na última hora, sentando-se na cama, a testa encharcada de suor. E o rádio-relógio na sua cabeceira gritava em letreiro verde neón: quinze para as quatro. A hora pairava fantasmagórica na escuridão sepulcral do quarto. Não conseguia esquecer o que tinha visto em seu consultório no dia anterior. E agora não sabia como poderia voltar ao trabalho logo mais, dentro de aproximadamente três horas. Estava aterrorizado, em pânico.

Era algo psicológico, tinha certeza. Uma mera questão de tentar ser mais racional e tentar organizar os pensamentos. O problema é que desde quando removeu seu jaleco após a consulta das dezenove horas daquela fatídica terça-feira, mal conseguiu debruçar seus olhos sobre qualquer outra pessoa. Estava com medo de sofrer o mesmo impacto que o havia traumatizado. Talvez a força que fez para não transparecer a repulsa que sentia enquanto estava na presença do paciente tenha agravado o efeito retardado da ojeriza que agora tinha por qualquer ser humano. Em menos de 24 horas havia desenvolvido um alto grau de aversão à figura humana. E assim, optou por se ausentar do trabalho.

Curioso, foi o que muitos disseram assim que souberam do problema. O doutor se tornara assunto freqüente nas rodinhas de parentes, amigos e colegas de trabalho mais próximos. A sua reclusão há meses já começava a preocupar seriamente muitos deles. Ele não saía de casa para nada e não tinha contato algum com ninguém. Comentava-se que trocara sua televisão pelo rádio apenas para evitar de ficar olhando mais rostos.  E para falar com ele, apenas via telefone.

Mas a verdade é que nem mesmo essas ferramentas de comunicação ele utilizava, pois, de uma forma ou de outra, o faziam se lembrar de olhos, bocas, narizes e, conseqüentemente, daquilo que havia visto. Era uma espiral louca que lhe lançava numa paranóia onde, qualquer coisa ao seu redor perdia sua característica e ganhava um rosto. Pensava que, por trás de todos aqueles livros, móveis e aparelhos havia uma criatura humana e isso lhe embrulhava o estômago. Tudo era gente olhando para ele. Tudo era nojento. E assim, os meses viraram estações inteiras, anos, uma década. O jovem e promissor doutor agora era um pobre doente paranóico.

Nunca aceitou as visitas de médicos e da última vez que foi visto na sua vizinhança, estava partindo desvairadamente em seu carro com tudo que podia carregar dentro e nunca mais voltou. Há boatos de que atualmente ele vive em alguma chácara distante de tudo e de todos ao sul. Quanto ao seu cliente das dezenove horas da fatídica terça-feira, o que foi possível averigüar é que nada constava na agenda do doutor e suas secretárias desconhecem a realização desta consulta. Tudo que elas sabem é que o doutor passara a última meia hora de trabalho sozinho, apenas ele e os botões do seu jaleco. Ou não.

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coação na horta



por Eduardo Cozer

Ah! A empolgação do vento batendo em ondas invisíveis! Os pulmões sendo exigidos ao máximo da capacidade. O cheiro do verde das plantas e flores, o aroma de terra fresca espremida sob as patas peludas. O sangue quente fazendo o corpo formigar. No entanto, a diversão desfrutada pelo jorro de adrenalina na corrente sanguínea não é maior do que o instinto de sobrevivência oriundo do jogo de perseguição. E lá se vai, por mais uma manhã, a lebre marrom atravessando o gramado para chegar à horta, rica em cenouras, nabos, rabanetes e batatas.
Entretanto, há também outra entusiasta das corridas matinais: a raposa-vermelha. Olfato aguçado, para não embaralhar o odor peculiar da lebre assustada com a infinidade de fragrâncias que podia captar, visão projetada no ponto mais distante em busca da presa e audição sensível a qualquer triscar de patas nas folhas sobre o solo. A raposa vinha dando incertas contra a lebre há sete dias agora e já estava ficando incomodada com isso. Hoje pegaria aquela danada.
E pegou. Quando a interceptou já foi logo falando:
- Alto lá, lebre matreira! Quem você pensa que é para sair pegando estas belas hortaliças sem me consultar? – resmungou a raposa felpuda, cheia de pose.
- Ora essa! Era só o que me faltava. Uma raposa melindrada! – fungou a lebre, passando a pata traseira sobre as longas orelhas – Por que deveria consultá-la? – provocou.
- Pelo simples motivo de que esta horta faz parte do meu território e por aqui, minha amiga, nós temos regras – gabou-se a raposa, fazendo uma mesura exagerada para enfatizar o que dizia.
- Nós? Regras? Estou confusa... – admitiu a pobre lebre faminta.
- Logo, logo você aprende... – tranquilizou a criatura de dentes afiados – Se você prestar mais atenção ao seu redor verá que tudo aqui tem um motivo. Cada animal desta região caça, colhe ou produz alguma coisa. Eu garanto que ninguém passe o inverno desabastecido em troca de algo de valor. Assim, eu e você precisamos chegar a um acordo... – sugeriu cheia de malícia – O que você tem para me oferecer?
- Olha, raposa, digo, Dona Raposa, sou uma lebre de vida simples. Não tenho nada a oferecer que possa lhe interessar – atestou ingenuamente a lebre.
Mas a raposa tinha um ponto em mente. E já estava em vias de chegar ao que queria:
- Você faz muito pouco de si mesma, cara lebre. Pois eu bem sei que você teve uma farta ninhada há pouco e um dos pequeninos anda desenganado, vai de mal a pior. Deixe ele a meus cuidados e estamos acertadas – piscou a raposa, dando seu golpe final.
Ao que a lebre, entrando no jogo do vil canídeo, respondeu:
- Isso eu não posso fazer. Mas, se me permite sugerir, conheço uma família de esquilos bastante irritante. Eles vivem próximos à minha toca e têm um filhote que se encaixa no perfil que você procura. Ele lhe sairá melhor do que a encomenda! – solucionou o caso.
- Hum! Você pegou rápido o negócio. Então estamos acertadas e ...
Mas a raposa nem conseguiu terminar de falar. Fora surpreendida por uma matilha de beagles que cercava o perímetro a mando da lebre astuta e precavida. Os cães destroçaram a raposa e a lebre foi colher suas hortaliças sem dar mais nenhuma atenção à sua interlocutora. Porque morria de fome. E porque acidentes apenas acontecem com aqueles que deixam que lhes aconteça.
Esta já era a quinta horta que a lebre dominava para sua família, que não parava de se multiplicar. Pensou consigo mesma se algum dia seria tratada com mais respeito pelos mamíferos maiores. Por ora, apreciou seu rabanete, relembrando com crueldade do fato ocorrido minutos atrás.

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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

domingo, 31 de outubro de 2010

Motivos para sorrir



por Eduardo Cozer

Enquanto isso, em um ordinário ônibus de uma megalópole numa pseudo-potência latino-americana:
- Boa tarde – cumprimentou o sujeito, estendendo sua última cédula na carteira para o cobrador.
- É dois e vinte. “Falta” vinte centavos – retrucou a figura desdentada com a entonação de quem se sente pouco orgulhoso em exercer sua profissão.
Contraiu a face. Enfiou a mão direita fundo no bolso da calça jeans puída.
- Amigo, é tudo que eu tenho. Não quebra meu galho, não? – perguntou humildemente, na tentativa de gerar compaixão no coração do seu mais novo camarada.
- Vai lá – disse o cobrador, naquele instante sentindo-se um mestre do universo, apegando-se ao mísero poder que sua função lhe conferia – Mas só dessa vez, hein? – deleitando-se com esta última frase.
Passou pela catraca carregando consigo o peso da humilhação de ter precisado recorrer ao expediente do "jeitinho". Mal podia se deslocar naquela sucata sobre rodas. Pelo sacolejar dos passageiros, parecia que todas as porcas do veículo estavam afrouxadas e que a mera passagem por mais uma cratera no asfalto traria abaixo aquele monte de ferrugem que curiosamente insistia em permanecer de pé.
- Tá ocupado? – perguntou pela terceira vez e novamente recebeu uma resposta afirmativa com um breve aceno de cabeça. Ficou pendurado num corrimão a viagem inteira, durante duas horas e meia.
De repente sentiu um esbarrão às costas que quase o levou ao chão. Conseguiu se segurar, assustado, e olhou para trás. Viu um indivíduo corpulento que o olhava apreensivo. Não tinha culpa do ocorrido.
- Nada! – respondeu ao pedido de desculpas do homem gigantesco.
Percebeu então que havia passado do seu ponto de destino. Puxou veementemente a cordinha, que não funcionou. Berrou ao motorista algo de difícil compreensão, só para chamar a atenção. Uma brecada brusca e saltou para a liberdade com o ônibus ainda em movimento. Ao tatear seu bolso esquerdo, entendeu a trombada que havia sofrido minutos antes. Não tinha mais celular.
Chegando à casa, notou que sua vidraça havia sido quebrada. Medo de ter sido mais uma vítima da violência que corroía a comunidade onde vivia, ou melhor, tentava sobreviver. Temeu pelos seus filhos. Acelerou o passo. Enfiou a mão na maçaneta com o coração aos pulos.
Foi então que pode visualizar a cena. Seus pequeninos estavam espalhados no chão do casebre humilde. Rolaram lágrimas pelas suas faces. Lágrimas da mais pura felicidade. Todos os três deitados de bruços, empenhados em suas tarefas do colégio. Um ajudando ao outro, todos divertindo-se, como bons irmãos. Eram a razão da sua vida, o motivo do seu sorriso e a esperança de um futuro melhor. Juntou-se a eles e, naquela noite, os risos naquela casa podiam ser ouvidos a quilômetros de distância. Dias melhores estavam por vir.

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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Bola na cal, heróis na berlinda



por Eduardo Cozer

Pênalti. Agora era Tilico, a bola, o goleiro e o gol. A gorducha de couro, companheira de longa data, sua única aliada para alcançar o tão sonhado título. Sonho alimentado principalmente pela torcida do Bananense Futebol Clube por mais tempo do que o mais velho dos torcedores podia se lembrar. Para os 77 mil presentes, vivenciar o triunfo do seu pavilhão sobre todos os outros seria algo maravilhosamente inédito. Para todos os lados que se olhava podia-se ver homens, mulheres e crianças no estado mais pleno de sua conexão com o poder transcendental no qual criam.

Os olhos castanhos fixos no rosto do arqueiro adversário simbolizavam o peso que Tilico sentia e tentava não transparecer. A verdade é que o ambiente no Estádio das Bananeiras envolvia, emocionava e encantava, capaz de fazer com que marmanjos de cinqüenta anos na cara ficassem com olhos marejados. Com Tilico não poderia ser diferente. Cada gota grossa de suor que escorregava de sua testa explodia no gramado na forma de centenas de gotículas, irrigando o gramado do majestoso Bananeiras com sal, adrenalina e esperanças.

Na longa caminhada até o ponto de onde a penalidade máxima seria executada, o flash de sair correndo e escapar daquela pressão passou milhares de vezes por sua cabeça. Mas havia miríades de olhos sobre ele. No popular, não podia dar para trás agora. E procurava apagar pensamentos negativistas da cabeça. Mas quanto mais tentava afastá-los, mais os atraía. Por que isso sempre acontece com ele?

As pernas arqueadas, cobertas pelos meiões parcialmente arriados e sujos de lama, pesavam uma tonelada cada. Cada passo representava um esforço idêntico ao de disputar 90 minutos de uma final de Copa do Mundo. Do início da sua caminhada até chegar à meta, segurando a bola longe do corpo, como uma bomba-relógio prestes a explodir, mudara totalmente sua percepção a respeito de Roberto Baggio, vilão italiano no tetra mundial brasileiro em 1994. Afinal de contas, o pobre coitado era só um mero mortal. E bater um pênalti era responsabilidade demais até mesmo para o presidente do clube. É cruel demais com o executor da cobrança.

A torcida reverbera e Tilico escuta seu nome sendo gritado pela massa ensandecida. Chamavam-no de Tilico Lelé por conta das suas comemorações inusitadas e cheias de inspiração. Talvez seu apelido nunca tivesse feito tanto sentido quanto hoje. Pois, neste momento, Tilico estava psicologicamente em frangalhos.

Se recompôs. Encheu a mente de pensamentos bons. Olhou novamente para o goleiro adversário, agora com uma confiança altiva capaz de abalar a alma dos mais otimistas. Repetiu os movimentos sem pensar muito. Havia treinado penalidades sua vida inteira e poucas vezes havia desperdiçado cobranças em jogos oficiais. Deus não havia de ser tão injusto assim com ele. Porque ele era Tilico Lelé, ídolo da torcida. Ouviu o som seco da batida do seu pé esquerdo na bola. O turbilhão de sons se tornando uma zueira nos seus tímpanos. E o mundo ruiu sobre Tilico. Porque futebol não era uma invenção de Deus. E Ele pouco sabia sobre a façanha de tornar-se de herói a vilão em milésimos de segundo por culpa de uma penalidade máxima. Desabou incrédulo. Errara o chute da sua vida.

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domingo, 24 de outubro de 2010

Bravo, Catarina



por Eduardo Cozer

Catarina sentou-se com suavidade em sua banqueta de madeira com a coluna elegantemente ereta e admirou-se ao espelho. Foi a criatura mais bela que já se sentou naquele assento. Estava linda, deslumbrante. Naquele momento ela era uma figura transcendental e era preciso fazer muita força para lembrar a si própria de que não passava de uma mera mortal reluzindo à luz de um holofote, pois todos os seus sentidos a seduziam em acreditar no contrário. Um desavisado que passasse por ela poderia jurar de pés juntos que teria visto uma aura ao redor daquela poderosa mulher. Pois a poucos minutos de estrear, Catarina parecia uma deusa recém-saída de uma pintura de um grande mestre do Realismo. Uma Vênus de Botticelli, talvez.

Entretanto, era de carne e osso. E, àquela altura dos acontecimentos da noite de estréia, era como se o centro do mundo estivesse no seu estômago e controlar o nervosismo era algo simplesmente impossível. Sempre tentava se preparar para os grandes dias, se convencer de que no fim das contas era só mais uma noite, mas, quanto mais passavam os anos, mais nervosa parecia ficar. Respirava fundo, porém, ao expirar podia sentir que seu corpo era pura tremedeira enquanto expulsava o ar do busto inflado aos solavancos.

Gostava de pensar que isso significava que estava viva e ainda se importava com aquilo que amava fazer. E desta forma, tentando controlar o nervosismo, não conseguindo e se convencendo de que isso era bom, Catarina deixava o tempo passar até ser chamada para o palco do Teatro Mariinski. Nunca conseguia afastar da cabeça o pensamento de que seu tempo para o balé estava se esgotando mais rápido do que ela podia aceitar.

Aí, passada a coxia e a poucos centímetros de entrar em cena, vestia-se de confiança e tornava-se a bailarina protagonista do mundialmente famoso grupo de balé russo. Sentia que durante aquelas horas em que se desenrolava o espetáculo era como se o público vivesse todas as emoções através dela. Risos, lágrimas, excitação e angústia.

No caso, Catarina vivia uma princesa que, após espetar seu dedo em uma rosa no seu décimo sexto aniversário, entrava num estado de sono profundo. E seria libertada desta terrível maldição, arquitetada por uma fada maligna, apenas com o beijo do seu amor verdadeiro. Catarina, agora como Princesa Aurora, sem sequer abrir sua boca tinha a capacidade de tomar o público em suas mãos e fazê-lo viajar enquanto acompanhava seu gestual leve, belo, capaz de hipnotizar. As composições de Tchaikovsky eram o golpe de misericórdia nos espectadores, já rendidos pela graça e movimentos simétricos performados por Catarina.

Aplausos entusiasmados. Bravo! Bravo! Rosas aos pés. Podia até mesmo ouvir algumas pessoas saudando-a pessoalmente. Bravo, Catarina, bravo! As cortinas baixam. Catarina, com a cabeça humildemente reclinada para baixo, chora copiosamente e não sabe se será capaz de fazer tudo aquilo novamente. Amava demais o balé.

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